por Carlo Velho Masi - 27/01/2016
Por Carlo Velho Masi
O advogado que milita na área penal sabe
o quão importante é a correta condução de qualquer investigação
preliminar para assegurar que não haja instauração desnecessária de uma
futura ação penal, com as nefastas consequências que dela derivam para o
acusado. Ter conhecimento de que contra si tramita uma investigação é
crucial para o exercício do direito à não auto-incriminação, que sempre
deveria ser expressamente informado, junto à possibilidade de
assistência por um advogado (art. 5º, LXIII, da CF).
Por outra perspectiva, o operador que
atua na persecução penal também sabe o valor de indícios colhidos de
forma adequada e no momento certo para garantir que eventuais
condenações sejam formal e materialmente justas, evitando o acionamento
indevido ou excessivamente custoso e vagaroso da máquina judiciária.
Nesse sentido, em boa hora, a recente
lei nº 13.245/2016 alterou o artigo 7º do Estatuto da Advocacia e da OAB
(lei 8.906/1994), que trata dos direitos do advogado, para reformular o
inciso XIV (acesso aos autos de investigação) e incluir o inciso XXI
(assistência de clientes investigados durante a apuração de infrações).
Poderia aparentar desnecessário legislar
sobre tema que emana de uma leitura sistemática da Constituição Federal
(“dizer o óbvio”), porém a realidade da postura atual que emana das
agências punitivas – muitas vezes abusiva e excessivamente apegada ao
texto de lei – aponta em sentido oposto, sendo salutar a criação de
regras claras e objetivas no sentido de resguardar os direitos e
garantias fundamentais do cidadão.
Não há dúvida de que a maneira
retrógrada com que certas garantias fundamentais são afastadas de forma
banal no processo penal brasileiro deriva de uma cultura inquisitorial
ditatorial, construída por um discurso opressor tradicional enraizado no
agir dos operadores jurídicos, sendo a negativa de acesso às
investigações apenas mais uma demonstração do temor pela verdadeira
democracia. Isso explica o porquê desta discussão ser totalmente
dispensável em outros ordenamentos jurídicos que culturalmente respeitam
os alicerces mais básicos do Estado de Direito. A própria estrutura
“investigação preliminar/processo penal” revela uma supervalorização do
Estado em detrimento do indivíduo, neutralizando qualquer possível
reação sua, tornando-o mero objeto de uma inquisição com o propósito de chegar à Verdade.
Agora, é direito do advogado “examinar,
em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo
sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer
natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade,
podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”. A inovação fica por conta da ampliação do acesso a investigações de qualquer espécie e em qualquer órgão
(polícia judiciária, Ministério Público, órgãos reguladores, tribunais
de contas, etc.), mesmo as já concluídas, com cópias e apontamentos
podendo ser tomados por todos os meios tecnológicos disponíveis
(xerocópia, fotografia digital, scaneamento, gravação de mídias
portáteis, etc.). O exame de autos de prisão em flagrante, a
desnecessidade de juntada de procuração e a possibilidade de cópia de
peças já estavam na redação anterior do Estatuto e foram mantidos.
Em relação a esses direitos, foram
incluídos três novos parágrafos ao art. 7º, prevendo que a faculdade de
exame de investigações demanda a apresentação de procuração nos autos
sujeitos a sigilo (§10); que a autoridade competente pode impedir o
acesso aos elementos de prova e às diligências ainda não documentados, “quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências” (§11); e que a negativa de fornecer os autos da investigação ou o seu fornecimento incompleto, “com o intuito de prejudicar o exercício da defesa”, acarretará a responsabilização criminal e funcional
(disciplinar) do responsável por abuso de autoridade (lei nº
4.898/1965) – não excluída a responsabilidade civil – podendo o advogado
requerer o acesso ao juiz competente (§12).
A Súmula Vinculante nº 14 do STF,
aprovada em 2009, reconhecia na prática o direito do defensor de ter
acesso aos elementos de prova já documentados que dissessem respeito ao
exercício do direito de defesa em procedimentos investigatórios de competência da polícia judiciária.
Contudo, ao largo da discussão acerca da efetiva observância ou não da
súmula pelas instâncias ordinárias (sendo da negativa de acesso cabível o
recurso de “reclamação”, de acordo com o art. 103-A, §3º, da CF), o que
se percebe é que, desde então, houve uma ampliação das espécies de
investigações que têm culminado no oferecimento de denúncias criminais.
O reconhecimento da possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público atraiu a incidência da súmula[1], com a mesma exceção às diligências em curso (arts. 13 e 14 da Resolução nº 13/2006 do CNMP – veja aqui), porém não tem sido reconhecida sua aplicabilidade para procedimentos de natureza cível ou administrativa[2],
os quais bem podem ser utilizados para instruir ação penal. Apropriada,
portanto, a nova previsão do Estatuto da OAB do direito ao exame de
autos de “investigações de qualquer natureza”. Resta assegurada
vista não apenas de investigações criminais, mas de investigações em
geral (ex.: inquérito civil público, inquérito parlamentar, procedimento
investigatório, etc.), seja que denominações recebam, perante qualquer
órgão (MP, PF, PC, CADE, COAF, BACEN, IBAMA, CPI, TCU, CGU, etc.).
O fato de não precisar juntar procuração
nas investigações sem decreto de sigilo não implica a desnecessidade de
relação direta entre o cliente e o advogado. O advogado deve ser constituído
e isso deve ser aferido pela autoridade que preside a investigação, a
fim de evitar a exposição da investigação e das pessoas nela envolvidas.
Mesmo nas investigações sigilosas, cuja restrição se justifica para
preservação da intimidade do próprio investigado ou do ofendido, o
acesso aos autos pelo advogado está assegurado. A decretação de sigilo
em função da presença de dados pessoais não se confunde com o “sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade” (art. 20 do CPP), que é inerente ao inquérito policial.
Pela redação do inciso XIV, o advogado
pode ter acesso à investigação mesmo quando seu cliente não é apontado
como investigado. Pode ser vítima, testemunha ou terceiro, desde que
tenha algum interesse na apuração daqueles fatos. Se for
sigilosa a investigação, basta a juntada de procuração do constituinte.
Creio até que a não pode haver restrição para o acesso de pessoas
jurídicas, desde que presente o interesse nos fatos em averiguação.
Já as limitações para diligências em curso dependem de adequada fundamentação acerca do risco de comprometimento de sua eficiência, eficácia ou finalidade,
sob pena de responsabilização. Uma vez concluídas (devendo tramitar em
autos apartados), independente das conclusões a que cheguem, o acesso
torna-se cogente.
Em relação ao direito de acompanhar seu cliente durante a investigação, a lei agora prevê a sanção de nulidade absoluta (aquela cujo prejuízo
seria supostamente presumível) do interrogatório ou do depoimento que
não contar com a presença do advogado constituído. Tal nulidade
irradia-se a todos os elementos investigatórios ou probatórios dela
decorrentes direta ou indiretamente. O direito do advogado abarca,
ainda, no âmbito da apuração, a apresentação de razões e quesitos, tendo sido vetado o dispositivo que previa a requisição de diligências. Nas próprias justificativas do veto, entretanto, o Ministério da Justiça manifestou-se da seguinte forma: “resta,
de qualquer forma, assegurado o direito de petição aos Poderes Públicos
em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos
termos da alínea ‘a’, do inciso XXXIV, do art. 5º, da Constituição”.
Finalmente, há previsão legal de
nulidade no âmbito da investigação preliminar, algo que não vinha sendo
acolhido pela jurisprudência do STJ (“eventuais irregularidades ocorridas na fase inquisitorial não possuem o condão de macular todo o processo criminal”[3]), a despeito do reconhecimento de que de sua natureza administrativa, que atrairia a regra do art. 5º, LV, da CF (“aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).
Reconhece-se a chamada “teoria dos frutos da árvore envenenada”, que
trata das nulidades por derivação, isto é, aquelas surgem a partir de
uma nulidade anterior que contamina todos os atos dela diretamente decorrentes
(art. 157, §1º, do CPP). Ocorrida esta nulidade na investigação, não há
falar-se, pois, em saneamento por ocasião da oferta de acusação formal.
Agora, por força de lei, a nulidade por impedimento da atuação de
advogado constituído na investigação deve contagiar até mesmo a ação
penal. Oportuno consignar que por assistência do cliente
investigado não se pode entender apenas o acompanhamento quando de sua
oitiva, mas todo e qualquer ato de representação no exercício da defesa.
Quanto à apresentação de razões e
quesitos, ainda que de forma tímida, trata-se de um avanço no sentido de
preservar o direito de defesa, mas não chega a configurar a
possibilidade de um contraditório pleno, tal como era o objetivo do PLC
nº 6705/2013, que deu origem à lei. Quesitos são formulados para peritos (para testemunhas, informantes ou vítimas seriam feitas reperguntas, mas a possibilidade de o advogado formulá-las permanece polêmica); e razões são alegações de ordem procedimental ou material (talvez possam anteceder o relatório final da investigação).
Já em relação ao pedido de diligências,
alvo do veto presidencial, aparentemente esta faculdade já se encontra
inserida no direito de petição, ou seja, o advogado não está impedido de
requerer (não requisitar) providências (art. 14 do
CPP), cabendo à autoridade responsável o deferimento ou não.
Entendeu-se, ainda, que a possibilidade de requisição de diligências na investigação poderia tumultuar e potencialmente prejudicar a conclusão das investigações.
Se é bem verdade que a lei nº
13.245/2016 ampliou a possibilidade de atuação do advogado na
investigação preliminar, lamentavelmente não tornou sua presença obrigatória. Infelizmente, a assistência de advogado ainda é um direito disponível na
fase pré-processual, o que traz altos riscos à lisura do procedimento e
perpetua uma situação de desigualdade socioeconômica, onde aqueles que
carecem de recursos permanecem desassistidos e têm seus direitos
fundamentais violados pelo Estado.
Certo é que a reformulação dessas
prerrogativas dos advogados reafirma a qualidade de função essencial à
Justiça da própria advocacia (art. 133 da CF). Ganham não só os
profissionais, que poderão exercer a representação dos assistidos com
maior segurança e técnica, como os próprios representados e a cidadania,
que se beneficia com a asseguração do direito à ampla defesa. Não se
trata de criar algum embaraço às investigações, mas de assegurar a
amplitude do exercício do direito de defesa e possibilitar a
colaboração.
Resta saber se as mesmas interpretações
conduzirão a aplicação dos novos dispositivos no cotidiano, pois de nada
adianta a mudança legislativa sem a necessária introjeção da mesma na
mentalidade dos seus aplicadores.
NOTAS
[1] “O
Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade
própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde
que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer
indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas,
sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de
jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham
investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º,
notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da
possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do
permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados
(Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”.
(RE 593727, Redator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes, julgamento em
14.5.2015, com repercussão geral – tema 184).
[2] Rcl
10771 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento
em 4.2.2014, DJe de 18.2.2014. Rcl 8458 AgR, Relator Ministro Gilmar
Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 26.6.2013, DJe de 19.9.2013.
[3] HC
216.201/PR, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA
CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 13/08/2012.
HC 194.473/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em
10/04/2012, DJe 03/05/2012. HC 117.652/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/02/2012. HC
132.946/SP, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO
TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 20/09/2010.