Por Anderson Figueira da Roza
Quem atua na advocacia criminal, mais
cedo ou mais tarde vai se defrontar com alguma acusação envolvendo a
passionalidade de um casal. Estes casos quando veiculados pelos meios de
comunicação mexem com a sociedade, rendem comentários de toda a ordem,
as pessoas envolvidas são pré-julgadas imediatamente, muitas vezes não
entendemos como conseguem chegar a tal ponto, se por um momento da vida
tratava-se de um par que aos olhos dos outros era harmônico, alegre e se
amavam.
E como se sente um advogado criminalista
frente aos envolvidos? Falo especificamente quando o homicídio é
tentado, a vítima sobrevive, mas no calor dos acontecimentos, alguém
chamou a polícia, seja a própria vítima ou alguém que vive na mesma
residência, vizinho, etc. Pois então caros leitores, não é a toa que o
direito penal é um ramo do direito público, nesses casos como se diz nas
redes sociais: “tem muito amor envolvido”, e tudo muda com o tempo. Um
destes casos me deu muito trabalho, por que era a vítima que estava
desesperada para trazer seu marido de volta da prisão, mas você tem que
pensar no processo todo, então para cada ato, uma consequência, é
inevitável.
Era uma tarde de véspera de natal do ano
de 2010, numa cidade do interior do Estado, um casal como tantos outros
que se desentendia, mas se amava, estavam juntos há trinta anos,
tiveram três filhos que já eram adultos, sendo que dois deles ainda
moravam com os pais, o mais velho já estava casado e tinha uma filha,
logo, os protagonistas dessa história já eram avós. Durante os
preparativos para a ceia de natal, uma séria discussão entre o casal,
xingamentos e promessas de uma separação para logo em seguida, e o
marido a pedido do filho, saiu para dar uma volta e depois de cabeça
mais leve, deveria voltar, o filho caçula foi buscar sua namorada.
O marido foi para o bar, se embriagou em
alguns minutos, pegou seu canivete do chaveiro e pensou: vou dar um
susto nessa mulher. Então voltou para casa, na rua aos berros chamou a
sua mulher, nem conseguia abrir o portão da casa direito, e a segurou,
lhe dando uma gravata, e puxou o canivete e pressionou contra o pescoço
da sua esposa. Por causa dos gritos, os vizinhos chegaram e conseguiram
conter o marido, muito alterado, que continuava ameaçando a esposa. Os
filhos não estavam em casa. Algum vizinho chamou a polícia. Na delegacia
ela relatou o fato e decidida pela separação, não teve dúvida,
registrou a ocorrência policial, pediu o afastamento, representou
criminalmente contra o marido e quando soube que ele a partir de então
estava preso em flagrante, sentiu-se aliviada.
Esta senhora foi buscada na delegacia
pelo filho do meio, e voltou para casa, se desculpou com os vizinhos
pelo ocorrido, relatou que o seu marido ficaria preso somente aquela
noite. Chegaram os outros filhos, e foi uma noite de Natal diferente de
todas as outras daquela família, afinal para os filhos ele era um bom
pai, e presente durante toda a vida deles.
O filho mais velho contratou um advogado
local para atender o seu pai. Porém, o ministério público representou
pela prisão preventiva do acusado e o juiz plantonista decretou a prisão
preventiva do mesmo. Dois dias depois, esta senhora arrependida por
tudo, desnorteada e desorientada, foi na delegacia e no Foro, na sua
cabeça queria apenas “retirar a queixa”, e foi esclarecida que não havia
mais como, que haveria um processo. O advogado contratado impetrou habeas corpus
no Tribunal de Justiça neste mesmo dia, e a liminar foi negada. Logo,
além do Natal, este senhor passou também a virada de ano preso.
Era dia 3 de janeiro de 2011, primeiro
dia útil do ano, mas no meio de recesso forense, logo eu iria ao
escritório para organizar meus arquivos e escrever peças pendentes. No
trajeto toca meu telefone e atendo, do outro lado uma voz feminina,
muito tensa, que me disse exatamente as palavras do título deste artigo:
Doutor: meu marido tentou me matar, está preso, o senhor pode soltá-lo e
trazê-lo de volta? Alguém tinha me indicado para ela, eu disse que
primeiro que lhe atenderia na parte da tarde com calma, visto que eles
eram do interior. Ela me respondeu: Eu estou no saguão do prédio do seu
escritório, vou lhe esperar aqui.
Cheguei minutos depois já me apresentei a
esta senhora, e a dois de seus filhos que lhe acompanhavam. Na conversa
preliminar, eles me informaram que já haviam desconstituído o advogado
local, estavam apavorados, era difícil ouvi-los sem que eles se
emocionassem a todo instante, afinal era o marido de trinta anos preso,
um empresário, os filhos adultos, uma vida pessoal e afetiva com
problemas no casamento, mas que jamais tinha acontecido algo como
naquela tarde. Ela relata que na verdade nem a lâmina do
canivete ele havia aberto, então ele nem tentou lhe matar, e que os
vizinhos não deveriam ter chamado a polícia. Após ouvir isso expliquei a eles que quem prende é o juiz, e quem solta também é o juiz ou um desembargador.
O advogado anterior havia feito um pedido de revogação de prisão preventiva e foi negado na origem e um habeas corpus
que estava com liminar negada, mas com o mérito ainda sem data para
julgamento pelo Tribunal de Justiça. O problema era que estávamos em
recesso. E com duas negativas destas, achar juiz ou desembargador no
primeiro dia útil do ano não seria tão simples assim.
Nesse meio tempo pedi que eles ficassem
mais algumas horas na cidade, enquanto eu iria colher a assinatura do
marido na prisão e conversar um pouco com ele. Eles me disseram que
ficariam na cidade até a soltura dele (que pressão). Enquanto isso,
minha secretária ficaria ligando para o foro da cidade deles e para o
Tribunal de Justiça, tentando marcar um horário para conversar com o
juiz ou desembargador. Conheci o marido dela, estava muito abatido,
barbudo, apavorado, chorando, desesperado. Não dei muita conversa,
apenas disse que havia sido contratado por seus familiares para resolver
o seu problema e que depois retornaria com mais notícias.
Conseguimos um horário para conversar
com o desembargador para a parte da tarde do dia seguinte. Não fui
sozinho, levei a vítima comigo, eu disse que ela iria pedir uma
reconsideração ao desembargador verbalmente. Eu já o conhecia por outros
tantos processos que defendi naquela câmara criminal, era um senhor
muito tranquilo, mas que dependeria dela a chance de que ele revogasse a
prisão do seu marido antes de um julgamento. Ele nos recebeu com muita
educação, nos ouviu com calma e ela chorando disse que queria se
divorciar do seu marido, mas que ele não precisava ficar preso, que foi
um mal entendido entre ambos que tomou proporções mais sérias porque foi
na rua, etc. No final da conversa, o desembargador me pediu que fizesse
então um pedido de reconsideração por escrito, que ele analisaria
novamente o caso, mas não adiantou se soltaria o marido dela.
Além de um pedido simples de
reconsideração e pedi que ela escrevesse a mão mesmo, uma declaração
sobre tudo que ela havia dito ao desembargador e protocolei. O marido, o
pai, o avô foi solto, e a paz para mim voltou, afinal com cliente solto
a família não fica ligando quatro a cinco vezes por dia, eles só
lembram-se de você uma semana antes de cada audiência.
E o processo? Ah, no processo que durou
dois anos ela assumiu a responsabilidade pelo desentendimento daquela
tarde, os policiais não viram o ocorrido e os vizinhos nem apareceram
para depor. O marido não foi pronunciado, não foi a júri popular. Não
soube mais do casal, como disse, nesses casos, a passionalidade fala tão
alto, que muitas vezes se acertam e voltam a ter uma vida normal sem
envolver mais polícia, e aí não precisam mais de advogados.