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sábado, 21 de novembro de 2015

Doutor, meu marido tentou me matar e está preso, o senhor pode soltá-lo?

por Anderson Figueira da Roza - 24/09/2015
Por Anderson Figueira da Roza
Quem atua na advocacia criminal, mais cedo ou mais tarde vai se defrontar com alguma acusação envolvendo a passionalidade de um casal. Estes casos quando veiculados pelos meios de comunicação mexem com a sociedade, rendem comentários de toda a ordem, as pessoas envolvidas são pré-julgadas imediatamente, muitas vezes não entendemos como conseguem chegar a tal ponto, se por um momento da vida tratava-se de um par que aos olhos dos outros era harmônico, alegre e se amavam.
E como se sente um advogado criminalista frente aos envolvidos? Falo especificamente quando o homicídio é tentado, a vítima sobrevive, mas no calor dos acontecimentos, alguém chamou a polícia, seja a própria vítima ou alguém que vive na mesma residência, vizinho, etc. Pois então caros leitores, não é a toa que o direito penal é um ramo do direito público, nesses casos como se diz nas redes sociais: “tem muito amor envolvido”, e tudo muda com o tempo. Um destes casos me deu muito trabalho, por que era a vítima que estava desesperada para trazer seu marido de volta da prisão, mas você tem que pensar no processo todo, então para cada ato, uma consequência, é inevitável.
Era uma tarde de véspera de natal do ano de 2010, numa cidade do interior do Estado, um casal como tantos outros que se desentendia, mas se amava, estavam juntos há trinta anos, tiveram três filhos que já eram adultos, sendo que dois deles ainda moravam com os pais, o mais velho já estava casado e tinha uma filha, logo, os protagonistas dessa história já eram avós. Durante os preparativos para a ceia de natal, uma séria discussão entre o casal, xingamentos e promessas de uma separação para logo em seguida, e o marido a pedido do filho, saiu para dar uma volta e depois de cabeça mais leve, deveria voltar, o filho caçula foi buscar sua namorada.
O marido foi para o bar, se embriagou em alguns minutos, pegou seu canivete do chaveiro e pensou: vou dar um susto nessa mulher. Então voltou para casa, na rua aos berros chamou a sua mulher, nem conseguia abrir o portão da casa direito, e a segurou, lhe dando uma gravata, e puxou o canivete e pressionou contra o pescoço da sua esposa. Por causa dos gritos, os vizinhos chegaram e conseguiram conter o marido, muito alterado, que continuava ameaçando a esposa. Os filhos não estavam em casa. Algum vizinho chamou a polícia. Na delegacia ela relatou o fato e decidida pela separação, não teve dúvida, registrou a ocorrência policial, pediu o afastamento, representou criminalmente contra o marido e quando soube que ele a partir de então estava preso em flagrante, sentiu-se aliviada.
Esta senhora foi buscada na delegacia pelo filho do meio, e voltou para casa, se desculpou com os vizinhos pelo ocorrido, relatou que o seu marido ficaria preso somente aquela noite. Chegaram os outros filhos, e foi uma noite de Natal diferente de todas as outras daquela família, afinal para os filhos ele era um bom pai, e presente durante toda a vida deles.
O filho mais velho contratou um advogado local para atender o seu pai. Porém, o ministério público representou pela prisão preventiva do acusado e o juiz plantonista decretou a prisão preventiva do mesmo. Dois dias depois, esta senhora arrependida por tudo, desnorteada e desorientada, foi na delegacia e no Foro, na sua cabeça queria apenas “retirar a queixa”, e foi esclarecida que não havia mais como, que haveria um processo. O advogado contratado impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça neste mesmo dia, e a liminar foi negada. Logo, além do Natal, este senhor passou também a virada de ano preso.
Era dia 3 de janeiro de 2011, primeiro dia útil do ano, mas no meio de recesso forense, logo eu iria ao escritório para organizar meus arquivos e escrever peças pendentes. No trajeto toca meu telefone e atendo, do outro lado uma voz feminina, muito tensa, que me disse exatamente as palavras do título deste artigo: Doutor: meu marido tentou me matar, está preso, o senhor pode soltá-lo e trazê-lo de volta? Alguém tinha me indicado para ela, eu disse que primeiro que lhe atenderia na parte da tarde com calma, visto que eles eram do interior. Ela me respondeu: Eu estou no saguão do prédio do seu escritório, vou lhe esperar aqui.
Cheguei minutos depois já me apresentei a esta senhora, e a dois de seus filhos que lhe acompanhavam. Na conversa preliminar, eles me informaram que já haviam desconstituído o advogado local, estavam apavorados, era difícil ouvi-los sem que eles se emocionassem a todo instante, afinal era o marido de trinta anos preso, um empresário, os filhos adultos, uma vida pessoal e afetiva com problemas no casamento, mas que jamais tinha acontecido algo como naquela tarde. Ela relata que na verdade nem a lâmina do canivete ele havia aberto, então ele nem tentou lhe matar, e que os vizinhos não deveriam ter chamado a polícia. Após ouvir isso expliquei a eles que quem prende é o juiz, e quem solta também é o juiz ou um desembargador.
 O advogado anterior havia feito um pedido de revogação de prisão preventiva e foi negado na origem e um habeas corpus que estava com liminar negada, mas com o mérito ainda sem data para julgamento pelo Tribunal de Justiça. O problema era que estávamos em recesso. E com duas negativas destas, achar juiz ou desembargador no primeiro dia útil do ano não seria tão simples assim.
Nesse meio tempo pedi que eles ficassem mais algumas horas na cidade, enquanto eu iria colher a assinatura do marido na prisão e conversar um pouco com ele. Eles me disseram que ficariam na cidade até a soltura dele (que pressão). Enquanto isso, minha secretária ficaria ligando para o foro da cidade deles e para o Tribunal de Justiça, tentando marcar um horário para conversar com o juiz ou desembargador. Conheci o marido dela, estava muito abatido, barbudo, apavorado, chorando, desesperado. Não dei muita conversa, apenas disse que havia sido contratado por seus familiares para resolver o seu problema e que depois retornaria com mais notícias.
Conseguimos um horário para conversar com o desembargador para a parte da tarde do dia seguinte. Não fui sozinho, levei a vítima comigo, eu disse que ela iria pedir uma reconsideração ao desembargador verbalmente. Eu já o conhecia por outros tantos processos que defendi naquela câmara criminal, era um senhor muito tranquilo, mas que dependeria dela a chance de que ele revogasse a prisão do seu marido antes de um julgamento. Ele nos recebeu com muita educação, nos ouviu com calma e ela chorando disse que queria se divorciar do seu marido, mas que ele não precisava ficar preso, que foi um mal entendido entre ambos que tomou proporções mais sérias porque foi na rua, etc. No final da conversa, o desembargador me pediu que fizesse então um pedido de reconsideração por escrito, que ele analisaria novamente o caso, mas não adiantou se soltaria o marido dela.
Além de um pedido simples de reconsideração e pedi que ela escrevesse a mão mesmo, uma declaração sobre tudo que ela havia dito ao desembargador e protocolei. O marido, o pai, o avô foi solto, e a paz para mim voltou, afinal com cliente solto a família não fica ligando quatro a cinco vezes por dia, eles só lembram-se de você uma semana antes de cada audiência.
E o processo? Ah, no processo que durou dois anos ela assumiu a responsabilidade pelo desentendimento daquela tarde, os policiais não viram o ocorrido e os vizinhos nem apareceram para depor. O marido não foi pronunciado, não foi a júri popular. Não soube mais do casal, como disse, nesses casos, a passionalidade fala tão alto, que muitas vezes se acertam e voltam a ter uma vida normal sem envolver mais polícia, e aí não precisam mais de advogados.
AndersonFigueira

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