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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Novo CPC, tutela antecipada e os três pecados capitais

Justitia
Credito @fotolia/jotajornalismo

MARCELO

Por Marcelo Pacheco Machado Professor da Faculdade de Direito de Vitória (ES)
Nos textos que tenho escrito aqui, nessa coluna, tenho manifestado sempre uma mesma preocupação. Agora, gostaria de fazer também um alerta.
Preocupação de sempre: o processo civil dever servir à resolução de problemas, pacificar conflitos e aplicar o direito material e, por isso, deve ser simples e previsível. Se não o for, corre o risco de se tornar – ele próprio – um problema a ser resolvido.
Alerta: o CPC de 2015, a despeito de haver prometido o contrário na exposição de motivos do projeto de lei, parece haver ignorado essa diretriz. Talvez na esperança de engrandecer o processo civil, agigantou a matéria e tornou os instrumentos processuais cada vez mais complexos e 1inseguros.
Nada, de fato, é tão representativo desse problema quanto o regramento das tutelas de urgência, mais especificamente, (1) na invenção de dois procedimentos distintos, um para tutela cautelar e outro para tutela antecipada; (2) na imposição de um “quase-dever” de recorrer da decisão que concede a tutela antecipada; e (3) no impensado regramento da estabilização da tutela antecipada não recorrida.
Estão aí delineados os três pecados capitais da tutela antecipada no Novo CPC, que este texto pretende apreciar.
Pecado 1: Pra que simplificar se podemos complicar?
Qual é a diferença entre uma tutela cautelar e uma tutela antecipada? A doutrina, em grande parte, afirma que a primeira teria natureza meramente conservativa, enquanto que a segunda – ainda que de modo provisório ou temporâneo como queria Calamandrei – antecipa a entrega do bem da vida, identificado pelo pedido (objeto litigioso do processo) [2].
O problema é que nem todas as hipóteses são assim tão certas. O caso mais clássico de “tutela cautelar” dos fóruns brasileiros, representado pela chamada “cautelar de sustação de protesto”, é um verdadeiro exemplo de tutela antecipada. Não se busca conservar, mas de fato antecipar os efeitos práticos de eventual procedência da ação declaratória de nulidade do título apontado a protesto (ação dita principal). Esta é a minha opinião…reconheço que muitos pensam diferente [3].
Tal circunstância serve, no entanto, para provar que, na prática, existe muita incerteza para a distinção entre as categorias, o que, no passado, estimulou entendimentos formalistas que negavam a medida pleiteada pela parte, embora com o rótulo equivocado. Tudo isso até a criação do § 7 º do art. 273 do CPC/73 e o reconhecimento de que ali tínhamos uma fungibilidade de mão dupla [4].
Demoramos uns bons 10 anos para resolver esse problema! O pecado é que o Novo CPC resolveu ressuscitá-lo, dando novamente combustível à incerteza processual. Zulmar Duarte, nessa mesma coluna, já havia advertido que “o Novo Código de Processo Civil deu um passo atrás, novamente acentuando as diferenças entre a tutela cautelar e a antecipada, na perspectiva da finalidade acautelatória ou satisfatória da tutela (artigos 303 e 305 do Novo CPC)”[5].
Agora, se o caso tratar de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, deverá ser seguido o procedimento do art. 303-304 do Novo CPC. Diferentemente, se o caso tratar de tutela cautelar antecedente, o procedimento a ser adotado será o do art. 305-310 do Novo CPC.
No procedimento cautelar, o réu é citado para contestar em 5 dias. Concedendo-se a tutela, o autor tem 30 dias para formular o pedido principal, nos mesmo autos. Indeferida a medida, o pedido principal pode ser formulado a qualquer tempo.
No procedimento da tutela antecipada, diferentemente, não há contestação. O autor formula o pedido de tutela de urgência. Se não houver recurso, o processo é extinto. Se houver recurso, o processo segue, e o autor tem o prazo de 15 (e não 30!) dias para formular o pedido principal e seguir com o procedimento comum.
Ficou complicado. Cada medida tem de ser identificada como cautelar ou antecipada e, só depois dessa identificação, será possível saber qual caminho seguir. E enquanto autor, réu, juiz e tribunal decidem se a medida é cautelar ou antecipada, o bem da vida ameaçado pela situação de urgência vai ter que aguardar….
Pecado 2: Recorrer é preciso!
Temos agora, relativamente às tutelas antecipadas, a possibilidade de estabilização. Ora, o que é isso? Não é nem sentença nem coisa julgada, mas representa a possibilidade de resolver o problema e finalizar o processo. Explico.
Se o autor formula requerimento de tutela antecipada, o réu é citado e tem prazo de 15 dias para se insurgir contra essa medida. Se o réu nada fizer e o autor restar silente, o processo acaba (extinção) e a medida concedida se estabiliza, valendo como forma de regulação do conflito, até que o réu, ou mesmo o autor, ajuíze nova demanda para questionar aquela situação e obter uma declaração do direito com cognição exauriente. Se esta nova demanda não for ajuizada, a situação de direito material será eternamente regulada pela tutela antecipada.
Até aí tudo bem. O pecado não está na estabilização. Diferentemente, está no fato de que, para impedir que a tutela antecipada se estabilize, o réu é obrigado a recorrer por meio de recurso de agravo de instrumento da decisão que concedeu a medida. Não há outra escolha!
Ainda que o recurso não seja a estratégia que julgue adequada, ainda que não queira ou não goste de recorrer, o réu terá de fazê-lo, pois, se não o fizer, o processo é extinto e a medida se estabilizará. Acreditem em mim, está na lei: “Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.
Poderia o legislador ter previsto que caberia ao réu uma petição de impugnação, uma “mini-contestação”, para evitar a estabilização? Sim, poderia. Mas não o fez. Preferiu exigir em bom português a interposição de um recurso. Talvez porque pretendesse combater a ociosidade de nossos tribunais… nunca se sabe!
Pecado 3: Na dúvida, adite. Afinal, ninguém pode prever o futuro.
Pra terminar, temos o terceiro pecado. Lembram da estabilização? Bem, ela ocorrerá apenas se o réu, depois de citado, não interpuser o cabível recurso de agravo no prazo de 15 dias. Isso, portanto, quer dizer que o autor deve esperar o recurso do réu. Se o réu não recorrer, nada mais seria exigido do autor. Ele pode se satisfazer com a estabilização da tutela antecipada, aguardar a extinção do processo, e fruir o bem da vida que lhe foi concedido prematuramente.
Diferentemente, se o réu recorrer, não haverá estabilização e o autor, para ter tranquilidade quanto à fruição do bem da vida, tem de buscar uma sentença de mérito.
Para tanto, caberá a ele formular – naquele mesmo processo – o pedido principal no prazo de 15 dias.
Sim, ok, mas onde está o pecado?
O pecado está quando a lei encontra o mundo real. O prazo para o réu recorrer é de 15 dias, certo? Sim. O problema é que a decisão de tutela antecipada pode ser concedida antes do contraditório, de modo que o réu vai ser citado e, apenas após a citação, terá os 15 dias para agravar.
O autor, diferentemente, será simplesmente intimado da decisão (muito provavelmente antes da citação). E quando o for, o prazo de 15 dias que tem para formular o pedido principal terá se esgotado em data muito anterior ao prazo do réu, para recorrer da decisão.
Pensemos em exemplo. O consumidor compra um carro de concessionária e o carro não é entregue. Ajuiza requerimento antecedente de tutela antecipada e a liminar é deferida. Intimado da decisão, tem 15 dias pra formular o pedido principal. Ocorre que o autor não quer continuar com o processo e espera que o réu não recorra. Mesmo assim, terá que preventivamente emendar a inicial em 15 dias, sob pena de perder a causa. E isso porque não consegue prever o futuro e ter certeza que, uma vez citado, o réu não interporá agravo.
Parece que o legislador não pensou nisso: quando tem de decidir se formula o pedido principal ou não, o autor, simplesmente, não terá condições de adivinhar se o recurso será interposto e se, portanto, haverá ou não estabilização da medida.
Ora, faz muito mais sentido formular pedido principal no caso de haver recurso, e a medida não se estabilizar. Na hipótese contrária, o autor pode legitimamente economizar atividade processual e fruir de imediato o bem da vida. É exatamente pra isso que serve a estabilização! O processo se extingue (CPC/2015, art. 304, § 1º)!
Então, qual é a saída? Ora, formule sempre o pedido principal, você não sabe se haverá ou não recurso. Afinal, se o réu recorrer e o autor não tiver formulado o pedido principal, o processo será extinto sem a estabilização da medida (CPC/2015, art. 303, § 2º). Leia-se: você perde!
Ocorre, então, de a verdadeira utilidade da estabilização, que seria poupar as partes de um longo e demorado processo de conhecimento, estar perdida pela incerteza do Código. Como o autor não sabe se a tutela antecipada se estabilizará ou não, terá de preventivamente formular demanda e provocar o desenvolvimento do processo de conhecimento (CPC/2015, art. 303, § 1º, I, II e III). Daí, estabilização pra quê?
Entenderam? Eu também não…

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[1] Vejamos trecho da exposição de motivos do anteprojeto apresentada ao Senado: “A expressiva maioria dessas alterações, como, por exemplo, em 1.994, a inclusão no sistema do instituto da antecipação de tutela; em 1.995, a alteração do regime do agravo; e, mais recentemente, as leis que alteraram a execução, foram bem recebidas pela comunidade jurídica e geraram resultados positivos, no plano da operatividade do sistema. O enfraquecimento da coesão entre as normas processuais foi uma conseqüência natural do método consistente em se incluírem, aos poucos, alterações no CPC, comprometendo a sua forma sistemática. A complexidade resultante desse processo confunde-se, até certo ponto, com essa desorganização, comprometendo a celeridade e gerando questões evitáveis (= pontos que geram polêmica e atraem atenção dos magistrados) que subtraem indevidamente a atenção do operador do direito. Nessa dimensão, a preocupação em se preservar a forma sistemática das normas processuais, longe de ser meramente acadêmica, atende, sobretudo, a uma necessidade de caráter pragmático: obter-se um grau mais intenso de funcionalidade”.
[2] Não temos dúvida que se trata de cautelar, totalmente conservativa, uma medida que tem como objetivo o bloqueio de bens específicos, para impedir que estes sejam vendidos no curso do processo, de modo a assegurar futura satisfação executiva (sequestro). Diferentemente, em demanda condenatória que visa a entrega de coisa certa, a concessão de medida de urgência para que o autor receba o bem, antes do julgamento de mérito, tem natureza “satisfativa”, devendo configurar inequivocamente tutela antecipada. O caso acima, do ponto de vista da materialização da tutela de urgência, mostra duas medidas muito similares, que representam a possibilidade de entrega ao autor da posse provisória de determinados bens (imaginando-se a possibilidade de o autor ser nomeado depositário). A diferença é que os pedidos principais, nos dois exemplos, são muito distintos, o que configura a natureza conservativa do primeiro (bloquear bens para viabilizar futura execução de quantia) e satisfativa do segundo (entregar o próprio bem que é objeto do pedido principal).
[3] Dinamarco demonstra, nesse sentido, que mesmo os melhores processualistas se confundem ao tratarem das tutelas cautelares conservativas e das possíveis distinções ontológicas em relação às tutelas satisfativas. Nesse sentido, relata que “o exemplo de maior impacto, trazido por Piero Calamandrei em sua obra magistral para ilustrar o poder geral de cautela conferido ao juiz, foi na realidade um caso de tutela antecipada”. Segundo professor, a história foi esta: “o proprietário de uma casa noturna de Paris havia encomendado a um pintor a decoração do salão de danças com afrescos, que representassem danças de sátiros e ninfas, e o pintor, querendo aumentar o interesse pela decoração mural, resolveu dar aos personagens, que nessas coreografias apareciam em vestes superlativamente primitivas, as fisionomias, facilmente reconhecíveis, de literatos e artistas muito conhecidos naquele ambiente mundano. Na noite da  inauguração, uma atriz, que fazia parte da multidão de convidados, teve a surpresa de reconhecer-se em uma das ninfas que dançavam com vestes extremamente sucintas; e, entendendo que essa representação era ofensiva ao seu decoro, deu início a um processo civil contra o proprietário do estabelecimento, com o pedido de sua condenação a eliminar aquela figura ultrajante e a reparar os danos. E pediu desde logo que, enquanto durasse o processo, fosse ordenado ao réu que cobrisse provisoriamente aquela parte do afresco que reproduzia a sua imagem em pose indecorosa”. Assim continua o professor das arcadas: Nem sempre as medidas urgentes se apresentam nitidamente definidas em seu enquadramento como medida cautelar ou como antecipação de tutela, grassando ainda muita insegurança entre os cultores brasileiros do processo civil. Acostumados a incluir na categoria das cautelares todas as medidas urgentes, inclusive as antecipatórias (até porque assim está no Código de Processo Civil, que foi elaborado quando não se tinha a percepção da existência dessa categoria), temos dificuldades quando nos pomos a indagar se dada medida é cautelar ou não, com a forte tendência de prosseguir superdimensionando o campo da cautelaridade. Como se procura demonstrar a seguir, as antecipações de tutela não são instrumentais ao processo, não se destinam a outorgar-lhe a capacidade de ser justo e útil (o que constitui missão das cautelares), mas a fornecer ao sujeito aquilo mesmo que ele pretende obter ao fim, ou seja, a coisa ou situação da vida pleiteada: os alimentos provisionais são antecipações dos próprios alimentos a serem obtidos afinal; a sustação do protesto cambial é o mesmo impedimento à realização deste, imposto desde logo e sem esperar o fim do processo etc. (Dinamarco, Nova era do processo civil. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, capítulo IV, item 21).
[4] Cássio Scarpinella Bueno, referindo-se às dificuldades encontradas pela doutrina em diferenciar as tutelas antecipadas das cautelares, identifica que “as incertezas da doutrina passaram a ter aptidão para causar prejuízos aos jurisdicionados, que, ao baterem nas portas do Judiciário, muitas vezes viam seus pleitos indeferidos por questões técnicas (…) indiferentes ao fato que reclamava o exercício de uma tutela de urgência, independentemente de seu nome ou natureza”. Assim, segundo o autor, “resolveu-se criar uma espécie de fungibilidade entre as tutelas ‘antecipada’ e ‘cautelar’ para que ninguém mais se visse barrado a litigar no Estado-juiz em função de uma discussão, utilíssima e importantíssima no plano teórico mas que não faz nenhuma diferença no foro, no dia-a-dia forense”. (Tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 122-123).
[5] O autor assim descrevia o fenômeno de integração entre as medidas: “Como o sistema não permitia, regra geral, a possibilidade de uma tutela provisória do direito, passou-se a manejar o procedimento cautelar para tal finalidade (desvirtuando-o, para alguns). Então, passamos a diferenciar entre acautelar o direito, colocando fora de risco sua atuação futura, e satisfazê-lo durante o andamento do processo. Enquanto a primeira finalidade poderia ser buscada na via cautelar, a segunda, para alguns, extravasava seus estreitos limites. (…) Com a incorporação da tutela antecipada no ordenamento processual (artigo 273 do CPC), a necessidade da distinção persistiu na medida em que servia de fronteira entre os pedidos cautelares e os antecipatórios. Aliás, visando por fim na discussão, o legislador reformista inseriu o § 7o no artigo 273 do CPC/1973, estabelecendo, assim, a fungibilidade entre os provimentos cautelares e de urgência. Caminhava-se para integração da medida cautelar com a tutela antecipada” (Acautelar ou satisfazer? O “velho problema” no Novo CPC, disponível em http://jota.info/acautelar-ou-satisfazer-o- velho-problema-no-novo-cpc. Acesso em 26.05.2015, às 16:48 h).
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*Marcelo Pacheco Machado é Doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.

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