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Por Marcelo Pacheco Machado
Professor da Faculdade de Direito de Vitória (ES)
Nos textos que tenho escrito aqui, nessa coluna, tenho
manifestado sempre uma mesma preocupação. Agora, gostaria de fazer
também um alerta.
Preocupação de sempre: o processo civil dever servir à resolução de
problemas, pacificar conflitos e aplicar o direito material e, por isso,
deve ser simples e previsível. Se não o for, corre o risco de se tornar
– ele próprio – um problema a ser resolvido.
Alerta: o CPC de 2015,
a despeito de haver prometido o contrário na exposição de motivos do
projeto de lei, parece haver ignorado essa diretriz. Talvez na esperança
de engrandecer o processo civil, agigantou a matéria e tornou os
instrumentos processuais cada vez mais complexos e 1inseguros.
Nada, de fato, é tão representativo desse problema quanto o
regramento das tutelas de urgência, mais especificamente, (1) na
invenção de dois procedimentos distintos, um para tutela cautelar e
outro para tutela antecipada; (2) na imposição de um “quase-dever” de
recorrer da decisão que concede a tutela antecipada; e (3) no
impensado regramento da estabilização da tutela antecipada não
recorrida.
Estão aí delineados os três pecados capitais da tutela antecipada no Novo CPC, que este texto pretende apreciar.
Pecado 1: Pra que simplificar se podemos complicar?
Qual é a diferença entre uma tutela cautelar e uma tutela antecipada?
A doutrina, em grande parte, afirma que a primeira teria natureza
meramente conservativa, enquanto que a segunda – ainda que de modo
provisório ou temporâneo como queria Calamandrei – antecipa a entrega do
bem da vida, identificado pelo pedido (objeto litigioso do processo)
[2].
O problema é que nem todas as hipóteses são assim tão certas. O caso
mais clássico de “tutela cautelar” dos fóruns brasileiros, representado
pela chamada “cautelar de sustação de protesto”, é um verdadeiro exemplo
de tutela antecipada. Não se busca conservar, mas de fato antecipar os
efeitos práticos de eventual procedência da ação declaratória
de nulidade do título apontado a protesto (ação dita principal). Esta é a
minha opinião…reconheço que muitos pensam diferente [3].
Tal circunstância serve, no entanto, para provar que, na prática,
existe muita incerteza para a distinção entre as categorias, o que, no
passado, estimulou entendimentos formalistas que negavam a medida
pleiteada pela parte, embora com o rótulo equivocado. Tudo isso até a
criação do § 7 º do art. 273 do CPC/73 e o reconhecimento de que ali
tínhamos uma fungibilidade de mão dupla [4].
Demoramos uns bons 10 anos para resolver esse problema! O pecado é
que o Novo CPC resolveu ressuscitá-lo, dando novamente combustível à
incerteza processual. Zulmar Duarte, nessa mesma coluna,
já havia advertido que “o Novo Código de Processo Civil deu um passo
atrás, novamente acentuando as diferenças entre a tutela cautelar e a
antecipada, na perspectiva da finalidade acautelatória ou satisfatória
da tutela (artigos 303 e 305 do Novo CPC)”[5].
Agora, se o caso tratar de tutela antecipada requerida em caráter
antecedente, deverá ser seguido o procedimento do art. 303-304 do Novo
CPC. Diferentemente, se o caso tratar de tutela cautelar antecedente, o
procedimento a ser adotado será o do art. 305-310 do Novo CPC.
No procedimento cautelar, o réu é citado para contestar em 5 dias.
Concedendo-se a tutela, o autor tem 30 dias para formular o pedido
principal, nos mesmo autos. Indeferida a medida, o pedido principal pode
ser formulado a qualquer tempo.
No procedimento da tutela antecipada, diferentemente, não há
contestação. O autor formula o pedido de tutela de urgência. Se não
houver recurso, o processo é extinto. Se houver recurso, o processo
segue, e o autor tem o prazo de 15 (e não 30!) dias para formular o
pedido principal e seguir com o procedimento comum.
Ficou complicado. Cada medida tem de ser identificada como cautelar
ou antecipada e, só depois dessa identificação, será possível saber qual
caminho seguir. E enquanto autor, réu, juiz e tribunal decidem se a
medida é cautelar ou antecipada, o bem da vida ameaçado pela situação de
urgência vai ter que aguardar….
Pecado 2: Recorrer é preciso!
Temos agora, relativamente às tutelas antecipadas, a possibilidade de
estabilização. Ora, o que é isso? Não é nem sentença nem coisa julgada,
mas representa a possibilidade de resolver o problema e finalizar o
processo. Explico.
Se o autor formula requerimento de tutela antecipada, o réu é citado e
tem prazo de 15 dias para se insurgir contra essa medida. Se o réu nada
fizer e o autor restar silente, o processo acaba (extinção) e a medida
concedida se estabiliza, valendo como forma de regulação do conflito,
até que o réu, ou mesmo o autor, ajuíze nova demanda para questionar
aquela situação e obter uma declaração do direito com cognição
exauriente. Se esta nova demanda não for ajuizada, a situação de direito
material será eternamente regulada pela tutela antecipada.
Até aí tudo bem. O pecado não está na estabilização. Diferentemente,
está no fato de que, para impedir que a tutela antecipada se estabilize,
o réu é obrigado a recorrer por meio de recurso de agravo de
instrumento da decisão que concedeu a medida. Não há outra escolha!
Ainda que o recurso não seja a estratégia que julgue adequada, ainda
que não queira ou não goste de recorrer, o réu terá de fazê-lo, pois, se
não o fizer, o processo é extinto e a medida se estabilizará. Acreditem
em mim, está na lei: “Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos
termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.
Poderia o legislador ter previsto que caberia ao réu uma petição de
impugnação, uma “mini-contestação”, para evitar a estabilização? Sim,
poderia. Mas não o fez. Preferiu exigir em bom português a interposição
de um recurso. Talvez porque pretendesse combater a ociosidade de nossos
tribunais… nunca se sabe!
Pecado 3: Na dúvida, adite. Afinal, ninguém pode prever o futuro.
Pra terminar, temos o terceiro pecado. Lembram da estabilização? Bem,
ela ocorrerá apenas se o réu, depois de citado, não interpuser o
cabível recurso de agravo no prazo de 15 dias. Isso, portanto, quer
dizer que o autor deve esperar o recurso do réu. Se o réu não recorrer,
nada mais seria exigido do autor. Ele pode se satisfazer com a
estabilização da tutela antecipada, aguardar a extinção do processo, e
fruir o bem da vida que lhe foi concedido prematuramente.
Diferentemente, se o réu recorrer, não haverá estabilização e o
autor, para ter tranquilidade quanto à fruição do bem da vida, tem de
buscar uma sentença de mérito.
Para tanto, caberá a ele formular – naquele mesmo processo – o pedido principal no prazo de 15 dias.
Sim, ok, mas onde está o pecado?
O pecado está quando a lei encontra o mundo real. O prazo para o réu
recorrer é de 15 dias, certo? Sim. O problema é que a decisão de tutela
antecipada pode ser concedida antes do contraditório, de modo que o réu
vai ser citado e, apenas após a citação, terá os 15 dias para agravar.
O autor, diferentemente, será simplesmente intimado da decisão (muito
provavelmente antes da citação). E quando o for, o prazo de 15 dias que
tem para formular o pedido principal terá se esgotado em data muito
anterior ao prazo do réu, para recorrer da decisão.
Pensemos em exemplo. O consumidor compra um carro de concessionária e
o carro não é entregue. Ajuiza requerimento antecedente de tutela
antecipada e a liminar é deferida. Intimado da decisão, tem 15 dias pra
formular o pedido principal. Ocorre que o autor não quer continuar com o
processo e espera que o réu não recorra. Mesmo assim, terá que
preventivamente emendar a inicial em 15 dias, sob pena de perder a
causa. E isso porque não consegue prever o futuro e ter certeza que, uma
vez citado, o réu não interporá agravo.
Parece que o legislador não pensou nisso: quando tem de decidir se
formula o pedido principal ou não, o autor, simplesmente, não terá
condições de adivinhar se o recurso será interposto e se, portanto,
haverá ou não estabilização da medida.
Ora, faz muito mais sentido formular pedido principal no caso de
haver recurso, e a medida não se estabilizar. Na hipótese contrária, o
autor pode legitimamente economizar atividade processual e fruir de
imediato o bem da vida. É exatamente pra isso que serve a estabilização!
O processo se extingue (CPC/2015, art. 304, § 1º)!
Então, qual é a saída? Ora, formule sempre o pedido principal, você
não sabe se haverá ou não recurso. Afinal, se o réu recorrer e o autor
não tiver formulado o pedido principal, o processo será extinto sem a
estabilização da medida (CPC/2015, art. 303, § 2º). Leia-se: você perde!
Ocorre, então, de a verdadeira utilidade da estabilização, que seria
poupar as partes de um longo e demorado processo de conhecimento, estar
perdida pela incerteza do Código. Como o autor não sabe se a tutela
antecipada se estabilizará ou não, terá de preventivamente formular
demanda e provocar o desenvolvimento do processo de conhecimento
(CPC/2015, art. 303, § 1º, I, II e III). Daí, estabilização pra quê?
Entenderam? Eu também não…
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[1] Vejamos trecho da
exposição de motivos do anteprojeto apresentada ao Senado: “A
expressiva maioria dessas alterações, como, por exemplo, em 1.994, a
inclusão no sistema do instituto da antecipação de tutela; em 1.995, a
alteração do regime do agravo; e, mais recentemente, as leis que
alteraram a execução, foram bem recebidas pela comunidade jurídica e
geraram resultados positivos, no plano da operatividade do sistema. O
enfraquecimento da coesão entre as normas processuais foi uma
conseqüência natural do método consistente em se incluírem, aos poucos,
alterações no CPC, comprometendo a sua forma sistemática. A complexidade
resultante desse processo confunde-se, até certo ponto, com
essa desorganização, comprometendo a celeridade e gerando questões
evitáveis (= pontos que geram polêmica e atraem atenção dos magistrados)
que subtraem indevidamente a atenção do operador do direito.
Nessa dimensão, a preocupação em se preservar a forma sistemática das
normas processuais, longe de ser meramente acadêmica, atende, sobretudo,
a uma necessidade de caráter pragmático: obter-se um grau mais intenso
de funcionalidade”.
[2] Não temos dúvida
que se trata de cautelar, totalmente conservativa, uma medida que tem
como objetivo o bloqueio de bens específicos, para impedir que estes
sejam vendidos no curso do processo, de modo a assegurar futura
satisfação executiva (sequestro). Diferentemente, em demanda
condenatória que visa a entrega de coisa certa, a concessão de medida de
urgência para que o autor receba o bem, antes do julgamento de mérito,
tem natureza “satisfativa”, devendo configurar inequivocamente tutela
antecipada. O caso acima, do ponto de vista da materialização da tutela
de urgência, mostra duas medidas muito similares, que representam a
possibilidade de entrega ao autor da posse provisória de determinados
bens (imaginando-se a possibilidade de o autor ser nomeado depositário).
A diferença é que os pedidos principais, nos dois exemplos, são muito
distintos, o que configura a natureza conservativa do primeiro (bloquear
bens para viabilizar futura execução de quantia) e satisfativa do
segundo (entregar o próprio bem que é objeto do pedido principal).
[3] Dinamarco
demonstra, nesse sentido, que mesmo os melhores processualistas se
confundem ao tratarem das tutelas cautelares conservativas e das
possíveis distinções ontológicas em relação às tutelas satisfativas.
Nesse sentido, relata que “o exemplo de maior impacto, trazido por Piero
Calamandrei em sua obra magistral para ilustrar o poder geral de
cautela conferido ao juiz, foi na realidade um caso de tutela
antecipada”. Segundo professor, a história foi esta: “o proprietário de
uma casa noturna de Paris havia encomendado a um pintor a decoração do
salão de danças com afrescos, que representassem danças de sátiros e
ninfas, e o pintor, querendo aumentar o interesse pela decoração mural,
resolveu dar aos personagens, que nessas coreografias apareciam em
vestes superlativamente primitivas, as fisionomias, facilmente
reconhecíveis, de literatos e artistas muito conhecidos naquele ambiente
mundano. Na noite da inauguração, uma atriz, que fazia parte da
multidão de convidados, teve a surpresa de reconhecer-se em uma das
ninfas que dançavam com vestes extremamente sucintas; e, entendendo que
essa representação era ofensiva ao seu decoro, deu início a um processo
civil contra o proprietário do estabelecimento, com o pedido de sua
condenação a eliminar aquela figura ultrajante e a reparar os danos. E
pediu desde logo que, enquanto durasse o processo, fosse ordenado ao réu
que cobrisse provisoriamente aquela parte do afresco que reproduzia a
sua imagem em pose indecorosa”. Assim continua o professor das arcadas:
Nem sempre as medidas urgentes se apresentam nitidamente definidas em
seu enquadramento como medida cautelar ou como antecipação de tutela,
grassando ainda muita insegurança entre os cultores brasileiros
do processo civil. Acostumados a incluir na categoria das cautelares
todas as medidas urgentes, inclusive as antecipatórias (até porque assim
está no Código de Processo Civil, que foi elaborado quando não se
tinha a percepção da existência dessa categoria), temos dificuldades
quando nos pomos a indagar se dada medida é cautelar ou não, com a forte
tendência de prosseguir superdimensionando o campo da cautelaridade.
Como se procura demonstrar a seguir, as antecipações de tutela não são
instrumentais ao processo, não se destinam a outorgar-lhe a
capacidade de ser justo e útil (o que constitui missão das cautelares),
mas a fornecer ao sujeito aquilo mesmo que ele pretende obter ao fim, ou
seja, a coisa ou situação da vida pleiteada: os alimentos provisionais
são antecipações dos próprios alimentos a serem obtidos afinal; a
sustação do protesto cambial é o mesmo impedimento à realização deste,
imposto desde logo e sem esperar o fim do processo etc. (Dinamarco, Nova era do processo civil. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, capítulo IV, item 21).
[4] Cássio
Scarpinella Bueno, referindo-se às dificuldades encontradas pela
doutrina em diferenciar as tutelas antecipadas das cautelares,
identifica que “as incertezas da doutrina passaram a ter aptidão
para causar prejuízos aos jurisdicionados, que, ao baterem nas portas do
Judiciário, muitas vezes viam seus pleitos indeferidos por questões
técnicas (…) indiferentes ao fato que reclamava o exercício de uma
tutela de urgência, independentemente de seu nome ou natureza”. Assim,
segundo o autor, “resolveu-se criar uma espécie de fungibilidade entre
as tutelas ‘antecipada’ e ‘cautelar’ para que ninguém mais se
visse barrado a litigar no Estado-juiz em função de uma discussão,
utilíssima e importantíssima no plano teórico mas que não faz nenhuma
diferença no foro, no dia-a-dia forense”. (Tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 122-123).
[5] O autor assim
descrevia o fenômeno de integração entre as medidas: “Como o sistema não
permitia, regra geral, a possibilidade de uma tutela provisória do
direito, passou-se a manejar o procedimento cautelar para tal finalidade
(desvirtuando-o, para alguns). Então, passamos a diferenciar entre
acautelar o direito, colocando fora de risco sua atuação futura, e
satisfazê-lo durante o andamento do processo. Enquanto a primeira
finalidade poderia ser buscada na via cautelar, a segunda, para alguns,
extravasava seus estreitos limites. (…) Com a incorporação da tutela
antecipada no ordenamento processual (artigo 273 do CPC), a necessidade
da distinção persistiu na medida em que servia de fronteira entre os
pedidos cautelares e os antecipatórios. Aliás, visando por fim na
discussão, o legislador reformista inseriu o § 7o no artigo 273 do
CPC/1973, estabelecendo, assim, a fungibilidade entre os provimentos
cautelares e de urgência. Caminhava-se para integração da medida
cautelar com a tutela antecipada” (Acautelar ou satisfazer? O “velho
problema” no Novo CPC, disponível em
http://jota.info/acautelar-ou-satisfazer-o- velho-problema-no-novo-cpc.
Acesso em 26.05.2015, às 16:48 h).
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*Marcelo Pacheco Machado é Doutor e mestre em Direito Processual
pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de
Direito de Vitória. Advogado.
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